quarta-feira, 18 de março de 2009

O Caos de Apoena (continuação)

Aí, vieram os índios. Digo, chegamos lá, até eles. Apoena foi muito consciente, fazendo a gente ser comido como mingau – pelas beiradas. Ele nos levou primeiro aos suruís (imagine começar pelos cintas-largas?...). Agora – e é bom que eu esclareça que é também problema meu – devo dizer, a bem da verdade: eu estava com medo. Medo de ficar no meio dos índios, de não entender nada, de não ser entendido e, mais fundo, de encontrar pela frente o meu lado selvagem também, a natureza, sei lá... Nenhum botão para apertar que pudesse colocar as coisas do mundo no lugar (e ainda ter que apertar com alguma coerência o botão da máquina fotográfica que, afinal, era para isso que eu estava ali).
Então a gente desce do avião nos suruís, naquele capinzal que eles lá chamam de pista de pouso, a gente se aproxima e... – não é que os índios estão pensando que eu sou o novo chefe de posto?... Só que eu não sabia disso. Nem sabia que eles gostavam muito do ex-chefe. Mas percebi uma tensão no ar, que eu estava sendo observado, investigado, analisado, cheirado... (logo eu, que estava com medo). Até que o Apoena esclarecesse a questão, eu era o próprio colonizador dentro do caldeirão, cercado pelos selvagens famintos, mas a piada só tem graça agora...
Selvagens, mesmo, os suruís só se mostraram na pelada, que jogamos pouco depois. Muito chute na canela, muita disposição, muita correria. Pouco futebol, mas, afinal, como exercitar séculos de vocação para a luta ou a caça, quando o espaço se restringe a uma reserva não demarcada, cercada de fazendeiros a apenas alguns quilômetros? Só atropelando com bola e tudo esses brancos de asfalto que de vez em quando aparecem por lá. Nenhuma maldade. Apenas questão de vitalidade versus ociosidade. Mas isso era o lado bom das coisas...
Teve também a visita aos gaviões. Muita pobreza, sempre aquela tristeza, aquele sofrimento de quem teve de vestir a roupa do conquistador, falar a língua do conquistador, e, ainda assim, não descobriu onde estava a felicidade, que o conquistador diz que existe, mas nem se sabe se é verdade.
E teve ainda a ida aos cintas-largas e aí a coisa ficou muito séria. Esse foi o ponto máximo da tensão. Que caras! De novo a morte, sempre ela... Ficou fácil entender que Possidônio tivesse sido morto. Mas, também foi fácil entender o que já sofreu este povo, os que sobraram ali, nos olhando, e os que viram descer as bananas de dinamite sobre suas cabeças.
Porém, qual seria o meu gesto banal que liberaria este ódio profundo, que o branco usurpador e assassino bem merece?... Tirar uma foto em determinada direção, passar a mão no cabelo, coçar os tornozelos inchados e feridos pelas picadas de mosquitos?... Qualquer coisa comum que eu fizesse podia ser a derradeira ofensa. E todo o tempo aqueles olhos, de homens, mulheres, crianças, olhos fixos, acompanhando cada movimento.
Como esquecer aquele grupo de mulheres e crianças, empoleirados em cima de um monturo de terra de pouco mais de um metro de altura, tristes, absolutamente tristes, os olhos imantados em nós, em todas as direções? E a gente andando tão desenvoltos, prum lado e pro outro da aldeia, como executivos na Avenida Rio Branco, muito atarefados...
Eu confesso que estava fugindo deles, tentando escapar da ponta de faca dos olhos que me doía nas costelas. Quer dizer, eu acho que o próprio Apoena também fugiu, ou, pelo menos, usava a tática do não-enfrentamento. Ele também parecia muito desconfortável ali, ele também era rápido e ríspido, muito mais do que em qualquer outro lugar que visitáramos.
Claro: morte. Ele sabia disso melhor do que nós. Lá, ele esteve com a morte nas mãos. A referência "lá ele esteve com a morte nas mãos", mais do que uma imagem, é literal. Apoena encontrou ali, uns metros além, o corpo desfigurado do indianista, ex-jornalista, Possidônio Cavalcanti, seu amigo.
Lembro que fazia sol, um dia particularmente quente... Mas me ficou uma sensação de frio, como se estivéssemos envoltos – enquanto andávamos afobados – numa grande manta gelada, que vinha desde a cabeceira da pista onde o avião aterrissara (e como era longe: de vez em quando eu conferia com o rabo do olho), passando pela aldeia, depois pelo rio (onde o frio era mais denso) e ia até aquela serra no fundo, lá longe, já divisa de Mato Grosso.
E entre nós, só sussurros, gestos muito contidos. "Ali, bem ali, naquela curva... Era onde estava o corpo de Possidônio."
alguém me disse, baixinho, no ouvido. E eu fiz uma foto, bem geral, naquela direção, ninguém foi lá muito perto, mas essa imagem/foto continua inteirinha na minha cabeça, estou revendo enquanto escrevo.
Mais do que estrangeiros, inimigos. Era o que nós éramos ali. Quando batemos em retirada, ainda virei e fiz a foto do grupo em cima do monturo, como se fosse um gesto de afirmação pessoal, um último esforço de normalidade. Mas foi bem de longe, com uma tele grande, uma 500mm, covardemente...
Hoje sinto, afinal, que as duas vivências mais importantes dessa viagem eram lados opostos de uma mesma moeda: Zé Bel e os cintas-largas. E ambos me incomodaram, mas de formas diferentes. Zé Bel me pareceu assim uma espécie de Papai Noel... devo dizer "brasileiro"?... "mulato"?... Um rosto largo, a barba que o envolvia, a testa miúda, os olhos brilhantes, cristalinos, sempre um sorriso compreensivo e simpático o tempo todo. Mas é isso que dificulta esse depoimento, porque o sentimento mais óbvio que o Zé Bel passava era bondade. Eu vi logo que ele era um cara bom.
Quê que eu preciso, quê que eu devo, quê que adianta dizer mais sobre ele?... Me diz, não está dito tudo?... Era bom e pronto. Agora, o que rolava por baixo do pano, as mutretas, os perrengues, os sufocos, como saber?... Isso, melhor a Lilian dizer, porque ela se ligou mais. Eu sei que ele era bom, que essas coisas são visíveis nos olhos das pessoas (algumas...) e eu vi. Claro que era um bom devidamente relativizado, que eu já não estou nessa de absolutizar nem... sei lá, nem "o grande amor de minha vida". Mas posso mudar de idéia, é claro...
Insisto que é difícil falar dessas coisas, porque me é difícil viver esses convívios bons, criativos, prazerosos, porque – desculpe, leitor – tenho eu cá minhas repressões. Então eu fiquei só, timidamente acompanhando os movimentos, pra lá e pra cá, e pegando umas beiradas de conversas, ao invés de abrir um coração fraterno pro cara e ouvir o dele.
Doeu.
Do outro lado, os cintas-largas, máscaras de pedra. Ódios, rancores, raivas, tudo compactado, contido, sufocado. Mas, por baixo, vida. Resistente vida, sobrevivente vida. O que na verdade se via era a incompreensão. Duas culturas, dois povos que não se compreendiam. Desnecessário exemplificar. Mas, enquanto o branco, poderoso e senhor, solucionava a questão em sua cabeça pelo caminho da arrogância e da violência (que tanto podia se manifestar concretamente pelo esforço de dizimá-los, quanto simplesmente pela nossa eficiência profissional, nós, que, na verdade, não queríamos lhes fazer nenhum mal), o índio não tinha muitas saídas vencedoras. Se recolhia a seu mutismo, se escudava nos olhares e se defendia, mesmo que às vezes fosse possível um rápido (e desesperado) contra-ataque. Mas não compreendia o inimigo
E eu que vivi no meu micro-cosmos coisas tão semelhantes, quisera abraçar meu irmão índio e chorar juntos, ranger dentes contra todos os inimigos, os reais e os imaginários, agredir, bater, matar todas as incompreensões, tanto as dos outros quanto as nossas, internas. Mas, qual o quê...
Apenas vi neles mais um perigo, mais uma coisa que não compreendia, que me dava medo. Também doeu. Alguém compreende?
E se há outra coisa que eu não compreendia era a vida do Apoena.
Quer dizer, tecnicamente ou sociologicamente (ou por qualquer um desses critérios que se inventa para explicar porque é que deixamos de fazer o ideal e simplesmente carregamos nosso piano cotidiano), aí é muito fácil... O cara era filho de sertanista, viveu desde guri entre brancos e índios, acompanhou muitos primeiros contatos, não tinha mesmo nenhum motivo para preferir ser bancário (e sei que há nisso uma ironia mortal...). Certo. Mas, porque persistia nesse esforço insensato de administrar o caos?
Não que me passasse a impressão de que realmente acreditava que conseguiria. Acho que tinha a certeza absoluta de que só existia o caos, de que não havia a menor chance para a humanidade, de que muito antes do último afogado pelos excessos dos oceanos ou do último cremado pelo derradeiro incêndio florestal (que, claro, será na Amazônia, ainda há muito a queimar...), muito antes da morte desse último ser humano, os índios teriam deixado de existir, diluídos como povo ou indivíduos, se não pela violência da dominação, talvez na dissolvência dos consumos. E de que, muito antes do deles, viria o seu próprio fim, meramente casual.
E ainda assim continuava lutando, quixoteando pelas florestas, esbravejando pelas cidades. Tanto é, que fez o tanto que fez.
Alguém compreende?

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