quarta-feira, 18 de março de 2009

O Caos de Apoena

Capítulo do livro Apoena – o homem que enxerga longe:
[leia sobre o livro após o final do texto]




O Caos de Apoena
Aguinaldo Araújo Ramos

Muitas emoções atrás, fui parar um dia [em 1981] nas matas de Rondônia. Não que não tivesse entrado numa antes, mas pela primeira vez ia a um lugar que não estava sendo destruído à imagem e semelhança do homem branco-ocidental-cristão (!?). Claro, estou falando das aldeias. Tudo em volta já é uma grande Amazônia de estragos. Fui lá conhecer a verdadeira história do Possidônio, que já tinha ido antes, tinha ido pra morrer.
Fui com a Lilian, que sei lá que estranho e inexplicável chamado estava atendendo... Acho que nem ela. Bem que eu tentei deixar aqui, na beira do litoral, uns não sei quantos medos, outros tantos preconceitos. Mas, de fato, fui preocupado: não conhecia índios!... Meu instinto já tinha sido plastificado há muito tempo. Eu sabia que podia doer. E essa história de morte do Possidônio, essas coisas...
Bem... Cheguei e descobri logo que as coisas eram todas muito menos fixas do que eu gostaria. Sempre um clima de faroeste, tanto em Porto Velho como nas cidades que explodiam no caminho da BR-364, sempre uma sensação de que alguém ia te mandar uma bala de detrás da quina de um muro (ou, mais provável, do tronco de uma árvore) qualquer. Pelo menos foi assim que me pareceu que Apoena, Zé Bel, Dimas e outros viviam. Até a Denise, às voltas com aqueles missionários-lingüistas de fala malícia, digo, de fala macia, sem saber o que eles poderiam aprontar, além de robotizar e imbecilizar os índios. Quem sabe um veneno no chá das cinco?...
Não tivemos até aquela briga com o cara, aquele que disse que ia metralhar uns índios sei-lá onde?... Tivemos, não!... O Apoena foi quem encarou, porque foi ele que brigou – e briga séria, coisa de rolar pelo chão, e olha que o sujeito tinha uns capangas por perto, uma arma e um punhal na bolsa, também capanga. Apoena brigava defendendo os índios (e venceu!), imagine...
Eu não estava nem conseguindo defender meu equilíbrio emocional direito... Só consegui depois, com umas cervejas, quando a Lilian tirou uma foto minha dormindo, sentado na mesa, enquanto o Dimas contava uma daquelas histórias que é pena que eu estivesse muito cansado e mal refeito das emoções do dia...
Mas era tudo assim, o tempo todo. E é bom que eu repita isso, porque foi essa a primeira impressão, grande impressão, que me marcou lá em Rondônia: Morte! Respirava-se mortes, só se lembrava de mortes. Mas morte violenta, pesada. Fazendeiros que tinham matado uns índios a tiro, índios que tinham matado uns mateiros ou caçadores a bordunadas, sei lá... A morte estava na mesa, do café da manhã ao jantar. E quando a gente voava, também...
Porque nem sei se aqueles aviões são realmente aviões, como manda a boa tecnologia... Só sei que voavam e se pareciam muito com latas de sardinha aéreas. E a gente lá, voando com o Dimas e o Apoena. O Dimas muito sério, aquele tipo de seriedade que, mais do que ninguém, só os loucos carregam. Ele, Dimas, com muita prudência, de vez em quando verificando não-sei-o-quê e daqui a pouco tirando uma soneca, enquanto o Apoena pilotava. Ah, o Dimas também lia, pilotando, uns livrinhos românticos e de aventuras, né, Lilian?... E o Apoena me pareceu meio aprendiz, só que não se dispunha muito a reconhecê-lo... Era preciso o Dimas ficar muito sério, dar uns berros com ele, que queria às vezes fazer uma pirueta, uma ousadia qualquer, mesmo que lembrasse o tempo todo de seu amigo Ari, que ele, Apoena, tinha visto despencar junto com seu avião – bem na sua frente – pouco tempo antes da nossa chegada a Porto Velho.
De vez em quando a gente sentia uns frios na espinha, mas, como não entrar na "viagem" deles?... Depois de um tempo, achei tão normal aterrissar todo freiado na pista de pouso, aberta a alguns metros da aldeia dos cintas-largas, vendo à frente o rio Roosevelt e, à direita do final da pista, algumas carcaças de aviões que não pararam a tempo...
E teve o Zé Bel, que só foi morrer uns meses depois, mas que agora eu misturo na mesma sensação. Bela figura, o Zé Bel. Gostei muito da tranqüilidade dele, conversando sobre Apoena, sobre todas as violências que os fazendeiros andavam fazendo contra os suruís, e, ao mesmo tempo, sorrindo carinhoso para todas aquelas crianças, fosse indiozinho, fosse filho dele ou de outros, crianças que ficavam por ali, à sua volta.
Alma atormentada, que transformava em serviço pelos índios os muitos – imagino – conflitos que vivia. Zé Bel... Por que terá ele se matado na noite luminosa de Rondônia?... Ou terá sido morto?... Apenas mais uma árvore derrubada na Amazônia?... Sei lá... Morte, muita morte. Me impressionou muito. Mas aí é problema psicanalítico meu.


(continua abaixo ou neste link)

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