quarta-feira, 18 de março de 2009

O Caos de Apoena

Capítulo do livro Apoena – o homem que enxerga longe:
[leia sobre o livro após o final do texto]




O Caos de Apoena
Aguinaldo Araújo Ramos

Muitas emoções atrás, fui parar um dia [em 1981] nas matas de Rondônia. Não que não tivesse entrado numa antes, mas pela primeira vez ia a um lugar que não estava sendo destruído à imagem e semelhança do homem branco-ocidental-cristão (!?). Claro, estou falando das aldeias. Tudo em volta já é uma grande Amazônia de estragos. Fui lá conhecer a verdadeira história do Possidônio, que já tinha ido antes, tinha ido pra morrer.
Fui com a Lilian, que sei lá que estranho e inexplicável chamado estava atendendo... Acho que nem ela. Bem que eu tentei deixar aqui, na beira do litoral, uns não sei quantos medos, outros tantos preconceitos. Mas, de fato, fui preocupado: não conhecia índios!... Meu instinto já tinha sido plastificado há muito tempo. Eu sabia que podia doer. E essa história de morte do Possidônio, essas coisas...
Bem... Cheguei e descobri logo que as coisas eram todas muito menos fixas do que eu gostaria. Sempre um clima de faroeste, tanto em Porto Velho como nas cidades que explodiam no caminho da BR-364, sempre uma sensação de que alguém ia te mandar uma bala de detrás da quina de um muro (ou, mais provável, do tronco de uma árvore) qualquer. Pelo menos foi assim que me pareceu que Apoena, Zé Bel, Dimas e outros viviam. Até a Denise, às voltas com aqueles missionários-lingüistas de fala malícia, digo, de fala macia, sem saber o que eles poderiam aprontar, além de robotizar e imbecilizar os índios. Quem sabe um veneno no chá das cinco?...
Não tivemos até aquela briga com o cara, aquele que disse que ia metralhar uns índios sei-lá onde?... Tivemos, não!... O Apoena foi quem encarou, porque foi ele que brigou – e briga séria, coisa de rolar pelo chão, e olha que o sujeito tinha uns capangas por perto, uma arma e um punhal na bolsa, também capanga. Apoena brigava defendendo os índios (e venceu!), imagine...
Eu não estava nem conseguindo defender meu equilíbrio emocional direito... Só consegui depois, com umas cervejas, quando a Lilian tirou uma foto minha dormindo, sentado na mesa, enquanto o Dimas contava uma daquelas histórias que é pena que eu estivesse muito cansado e mal refeito das emoções do dia...
Mas era tudo assim, o tempo todo. E é bom que eu repita isso, porque foi essa a primeira impressão, grande impressão, que me marcou lá em Rondônia: Morte! Respirava-se mortes, só se lembrava de mortes. Mas morte violenta, pesada. Fazendeiros que tinham matado uns índios a tiro, índios que tinham matado uns mateiros ou caçadores a bordunadas, sei lá... A morte estava na mesa, do café da manhã ao jantar. E quando a gente voava, também...
Porque nem sei se aqueles aviões são realmente aviões, como manda a boa tecnologia... Só sei que voavam e se pareciam muito com latas de sardinha aéreas. E a gente lá, voando com o Dimas e o Apoena. O Dimas muito sério, aquele tipo de seriedade que, mais do que ninguém, só os loucos carregam. Ele, Dimas, com muita prudência, de vez em quando verificando não-sei-o-quê e daqui a pouco tirando uma soneca, enquanto o Apoena pilotava. Ah, o Dimas também lia, pilotando, uns livrinhos românticos e de aventuras, né, Lilian?... E o Apoena me pareceu meio aprendiz, só que não se dispunha muito a reconhecê-lo... Era preciso o Dimas ficar muito sério, dar uns berros com ele, que queria às vezes fazer uma pirueta, uma ousadia qualquer, mesmo que lembrasse o tempo todo de seu amigo Ari, que ele, Apoena, tinha visto despencar junto com seu avião – bem na sua frente – pouco tempo antes da nossa chegada a Porto Velho.
De vez em quando a gente sentia uns frios na espinha, mas, como não entrar na "viagem" deles?... Depois de um tempo, achei tão normal aterrissar todo freiado na pista de pouso, aberta a alguns metros da aldeia dos cintas-largas, vendo à frente o rio Roosevelt e, à direita do final da pista, algumas carcaças de aviões que não pararam a tempo...
E teve o Zé Bel, que só foi morrer uns meses depois, mas que agora eu misturo na mesma sensação. Bela figura, o Zé Bel. Gostei muito da tranqüilidade dele, conversando sobre Apoena, sobre todas as violências que os fazendeiros andavam fazendo contra os suruís, e, ao mesmo tempo, sorrindo carinhoso para todas aquelas crianças, fosse indiozinho, fosse filho dele ou de outros, crianças que ficavam por ali, à sua volta.
Alma atormentada, que transformava em serviço pelos índios os muitos – imagino – conflitos que vivia. Zé Bel... Por que terá ele se matado na noite luminosa de Rondônia?... Ou terá sido morto?... Apenas mais uma árvore derrubada na Amazônia?... Sei lá... Morte, muita morte. Me impressionou muito. Mas aí é problema psicanalítico meu.


(continua abaixo ou neste link)

O Caos de Apoena (continuação)

Aí, vieram os índios. Digo, chegamos lá, até eles. Apoena foi muito consciente, fazendo a gente ser comido como mingau – pelas beiradas. Ele nos levou primeiro aos suruís (imagine começar pelos cintas-largas?...). Agora – e é bom que eu esclareça que é também problema meu – devo dizer, a bem da verdade: eu estava com medo. Medo de ficar no meio dos índios, de não entender nada, de não ser entendido e, mais fundo, de encontrar pela frente o meu lado selvagem também, a natureza, sei lá... Nenhum botão para apertar que pudesse colocar as coisas do mundo no lugar (e ainda ter que apertar com alguma coerência o botão da máquina fotográfica que, afinal, era para isso que eu estava ali).
Então a gente desce do avião nos suruís, naquele capinzal que eles lá chamam de pista de pouso, a gente se aproxima e... – não é que os índios estão pensando que eu sou o novo chefe de posto?... Só que eu não sabia disso. Nem sabia que eles gostavam muito do ex-chefe. Mas percebi uma tensão no ar, que eu estava sendo observado, investigado, analisado, cheirado... (logo eu, que estava com medo). Até que o Apoena esclarecesse a questão, eu era o próprio colonizador dentro do caldeirão, cercado pelos selvagens famintos, mas a piada só tem graça agora...
Selvagens, mesmo, os suruís só se mostraram na pelada, que jogamos pouco depois. Muito chute na canela, muita disposição, muita correria. Pouco futebol, mas, afinal, como exercitar séculos de vocação para a luta ou a caça, quando o espaço se restringe a uma reserva não demarcada, cercada de fazendeiros a apenas alguns quilômetros? Só atropelando com bola e tudo esses brancos de asfalto que de vez em quando aparecem por lá. Nenhuma maldade. Apenas questão de vitalidade versus ociosidade. Mas isso era o lado bom das coisas...
Teve também a visita aos gaviões. Muita pobreza, sempre aquela tristeza, aquele sofrimento de quem teve de vestir a roupa do conquistador, falar a língua do conquistador, e, ainda assim, não descobriu onde estava a felicidade, que o conquistador diz que existe, mas nem se sabe se é verdade.
E teve ainda a ida aos cintas-largas e aí a coisa ficou muito séria. Esse foi o ponto máximo da tensão. Que caras! De novo a morte, sempre ela... Ficou fácil entender que Possidônio tivesse sido morto. Mas, também foi fácil entender o que já sofreu este povo, os que sobraram ali, nos olhando, e os que viram descer as bananas de dinamite sobre suas cabeças.
Porém, qual seria o meu gesto banal que liberaria este ódio profundo, que o branco usurpador e assassino bem merece?... Tirar uma foto em determinada direção, passar a mão no cabelo, coçar os tornozelos inchados e feridos pelas picadas de mosquitos?... Qualquer coisa comum que eu fizesse podia ser a derradeira ofensa. E todo o tempo aqueles olhos, de homens, mulheres, crianças, olhos fixos, acompanhando cada movimento.
Como esquecer aquele grupo de mulheres e crianças, empoleirados em cima de um monturo de terra de pouco mais de um metro de altura, tristes, absolutamente tristes, os olhos imantados em nós, em todas as direções? E a gente andando tão desenvoltos, prum lado e pro outro da aldeia, como executivos na Avenida Rio Branco, muito atarefados...
Eu confesso que estava fugindo deles, tentando escapar da ponta de faca dos olhos que me doía nas costelas. Quer dizer, eu acho que o próprio Apoena também fugiu, ou, pelo menos, usava a tática do não-enfrentamento. Ele também parecia muito desconfortável ali, ele também era rápido e ríspido, muito mais do que em qualquer outro lugar que visitáramos.
Claro: morte. Ele sabia disso melhor do que nós. Lá, ele esteve com a morte nas mãos. A referência "lá ele esteve com a morte nas mãos", mais do que uma imagem, é literal. Apoena encontrou ali, uns metros além, o corpo desfigurado do indianista, ex-jornalista, Possidônio Cavalcanti, seu amigo.
Lembro que fazia sol, um dia particularmente quente... Mas me ficou uma sensação de frio, como se estivéssemos envoltos – enquanto andávamos afobados – numa grande manta gelada, que vinha desde a cabeceira da pista onde o avião aterrissara (e como era longe: de vez em quando eu conferia com o rabo do olho), passando pela aldeia, depois pelo rio (onde o frio era mais denso) e ia até aquela serra no fundo, lá longe, já divisa de Mato Grosso.
E entre nós, só sussurros, gestos muito contidos. "Ali, bem ali, naquela curva... Era onde estava o corpo de Possidônio."
alguém me disse, baixinho, no ouvido. E eu fiz uma foto, bem geral, naquela direção, ninguém foi lá muito perto, mas essa imagem/foto continua inteirinha na minha cabeça, estou revendo enquanto escrevo.
Mais do que estrangeiros, inimigos. Era o que nós éramos ali. Quando batemos em retirada, ainda virei e fiz a foto do grupo em cima do monturo, como se fosse um gesto de afirmação pessoal, um último esforço de normalidade. Mas foi bem de longe, com uma tele grande, uma 500mm, covardemente...
Hoje sinto, afinal, que as duas vivências mais importantes dessa viagem eram lados opostos de uma mesma moeda: Zé Bel e os cintas-largas. E ambos me incomodaram, mas de formas diferentes. Zé Bel me pareceu assim uma espécie de Papai Noel... devo dizer "brasileiro"?... "mulato"?... Um rosto largo, a barba que o envolvia, a testa miúda, os olhos brilhantes, cristalinos, sempre um sorriso compreensivo e simpático o tempo todo. Mas é isso que dificulta esse depoimento, porque o sentimento mais óbvio que o Zé Bel passava era bondade. Eu vi logo que ele era um cara bom.
Quê que eu preciso, quê que eu devo, quê que adianta dizer mais sobre ele?... Me diz, não está dito tudo?... Era bom e pronto. Agora, o que rolava por baixo do pano, as mutretas, os perrengues, os sufocos, como saber?... Isso, melhor a Lilian dizer, porque ela se ligou mais. Eu sei que ele era bom, que essas coisas são visíveis nos olhos das pessoas (algumas...) e eu vi. Claro que era um bom devidamente relativizado, que eu já não estou nessa de absolutizar nem... sei lá, nem "o grande amor de minha vida". Mas posso mudar de idéia, é claro...
Insisto que é difícil falar dessas coisas, porque me é difícil viver esses convívios bons, criativos, prazerosos, porque – desculpe, leitor – tenho eu cá minhas repressões. Então eu fiquei só, timidamente acompanhando os movimentos, pra lá e pra cá, e pegando umas beiradas de conversas, ao invés de abrir um coração fraterno pro cara e ouvir o dele.
Doeu.
Do outro lado, os cintas-largas, máscaras de pedra. Ódios, rancores, raivas, tudo compactado, contido, sufocado. Mas, por baixo, vida. Resistente vida, sobrevivente vida. O que na verdade se via era a incompreensão. Duas culturas, dois povos que não se compreendiam. Desnecessário exemplificar. Mas, enquanto o branco, poderoso e senhor, solucionava a questão em sua cabeça pelo caminho da arrogância e da violência (que tanto podia se manifestar concretamente pelo esforço de dizimá-los, quanto simplesmente pela nossa eficiência profissional, nós, que, na verdade, não queríamos lhes fazer nenhum mal), o índio não tinha muitas saídas vencedoras. Se recolhia a seu mutismo, se escudava nos olhares e se defendia, mesmo que às vezes fosse possível um rápido (e desesperado) contra-ataque. Mas não compreendia o inimigo
E eu que vivi no meu micro-cosmos coisas tão semelhantes, quisera abraçar meu irmão índio e chorar juntos, ranger dentes contra todos os inimigos, os reais e os imaginários, agredir, bater, matar todas as incompreensões, tanto as dos outros quanto as nossas, internas. Mas, qual o quê...
Apenas vi neles mais um perigo, mais uma coisa que não compreendia, que me dava medo. Também doeu. Alguém compreende?
E se há outra coisa que eu não compreendia era a vida do Apoena.
Quer dizer, tecnicamente ou sociologicamente (ou por qualquer um desses critérios que se inventa para explicar porque é que deixamos de fazer o ideal e simplesmente carregamos nosso piano cotidiano), aí é muito fácil... O cara era filho de sertanista, viveu desde guri entre brancos e índios, acompanhou muitos primeiros contatos, não tinha mesmo nenhum motivo para preferir ser bancário (e sei que há nisso uma ironia mortal...). Certo. Mas, porque persistia nesse esforço insensato de administrar o caos?
Não que me passasse a impressão de que realmente acreditava que conseguiria. Acho que tinha a certeza absoluta de que só existia o caos, de que não havia a menor chance para a humanidade, de que muito antes do último afogado pelos excessos dos oceanos ou do último cremado pelo derradeiro incêndio florestal (que, claro, será na Amazônia, ainda há muito a queimar...), muito antes da morte desse último ser humano, os índios teriam deixado de existir, diluídos como povo ou indivíduos, se não pela violência da dominação, talvez na dissolvência dos consumos. E de que, muito antes do deles, viria o seu próprio fim, meramente casual.
E ainda assim continuava lutando, quixoteando pelas florestas, esbravejando pelas cidades. Tanto é, que fez o tanto que fez.
Alguém compreende?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

APOENA - O HOMEM QUE ENXERGA LONGE


Este é um livri muito especial... E é também comemorativo!
Apresenta o livro "Apoena – o homem que enxerga longe”.
E comemora sua publicação...



"Apoena – o homem que enxerga longe” é resultado de 25 anos de acompanhamento da vida e da obra de Apoena Meirelles, um dos mais importantes indigenistas brasileiros, e seus desdobramentos.
Filho de Francisco Meirelles, de quem foi seguidor, Apoena participou e muitas vezes comandou o processo de aproximação, contato e incorporação à sociedade formal de várias das maiores tribos indígenas brasileiras, entre elas Suruí, Cinta-Larga, Gavião, Zoró e Uru-eu-Wau-Wau, além dos Avá-Canoeiros.
Este livro é resultado de reportagens, entrevistas, pesquisas e compilações de textos efetuados por Lilian Newlands, com a colaboração de Aguinaldo Araújo Ramos, desde o final de 1981, quando de sua primeira viagem a Rondônia e ao denso mundo de Apoena.

Ecos do lançamento...

Um rápido registro do lançamento do livro Apoena – o homem que enxerga longe.
Os autores podem dizer que foi além da expectativa, com muito mais gente do que se esperava... Com a presença de muitos amigos, grato a todos!





Lilian Newlands agradece, Aguinaldo Ramos (à esq.) acompanha (foto: Márcia Hortência).







E muita emoção também... Estava grande parte da família de Apoena Meirelles, três de seus filhos (Tainá, veio da Suíça; Francisco, veio de Goiânia, belas figuras...), duas irmãs e a mãe, Abigail, de 80 e poucos anos, além de vários primos.
E, ainda, muitas pessoas ligadas às questões indígenas, inclusive índios mesmo...


Letícia Spiller conversa com uma das índas presentes (foto: Cleomir Tavares/Photo Rio News)







O ponto alto da noite foi a leitura de textos do livro, com destaque para Letícia Spiller (que, altamente motivada pelas questões indígenas, chorou de emoção ao ler...) e Tessy Callado, filha de Antonio Callado (que conheceu Apoena no Parque do Xingu), além de Jac Fagundes e Sérgio Fonta.



Letícia Spiller, ao lado de Jac, Sérgio e Tessy, lê trechos do livro (foto: Cleomir Tavares/Photo Rio News).








quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Lançamento




Apoena – o homem que enxerga longe” foi lançado no Rio de Janeiro, no dia 7 de Agosto de 2007, às 19h, no Bar Desacato – Gastronomia de Botequim (e certamente seu lado boêmio aprovaria o local...), à rua Conde de Bernadotte, 26-A, Leblon.

Artistas profissionais, admiradores de Apoena Meirelles, entre eles Letícia Spiller e Sérgio Fonta, farão a leitura de trechos do livro.


Letícia Spiller com o livro, coluna do Ancelmo Góes,
jornal O Globo, 31/07/07.











Estava previsto, entre outros, um lançamento na cidade de Goiânia, GO, a ser organizado pela Editora UCG, da Universidade Católica de Goiás.

Conteúdo

O livro “Apoena – o homem que enxerga longe” tem 223 páginas, em tamanho 21 x 15,5cm e papel off-set 75g.
Foi publicado pela Editora da Universidade Católica de Goiás – UCG, umas das mais respeitadas editoras brasileiras nas questões do indigenismo e no âmbito das Ciências Sociais.
Para comprar, informações em postagem abaixo. Para contato com os autores: aaraujoramos@gmail.com.

Adiante, trechos do livroApoena – o homem que enxerga longe”.

As reportagens de Lilian Newlands

Lilian no avião, Rondônia, 1981, foto A. Ramos



Jornalista de larga experiência, tendo trabalhado muitos anos no Jornal do Brasil, Lilian fez várias viagens a Rondônia na década de 80. Na primeira delas, no final de 1981, em companhia do fotógrafo Aguinaldo Ramos, viajou com Apoena Meirelles por várias aldeias, buscando recuperar a história de Possidônio Cavalcanti, jornalista que, tendo optado por ser indigenista, tinha sido morto pelos Cinta-Largas dez anos antes.

Possidônio e índio suruí, década de 1970.








Nas reportagens, Lilian Newlands reconta a saga de Apoena:
Foi naquele final dos anos 60 que Apoena vivenciou uma experiência que deixaria para sempre marcas de um afeto e uma amizade incondicionais – com os Surui de Rondônia.
Um longo tempo se passou até que o filho de seu Chico estabelecesse o primeiro contato face a face com um integrante desse povo. Desprezando todas as precauções aconselháveis pelos que exercem o ofício, Apoena, completamente sozinho, embrenhou-se mata a dentro e, despido, correu precipitado ao encontro do Surui Nauara, num gesto histórico inesquecível de coragem e humanidade.
- Ele tremia e eu também, confessou anos mais tarde, ressaltando que essa tribo foi a primeira que ele contatou sozinho, daí sua compreensível importância na vida do sertanista.


Apoena na Presidência Funai, com Denise

Lilian fala também sobre Denise, mulher de Apoena, a quem acompanhou em visitas a várias tribos da região:
As noites antigas e frias passadas às margens do rio Pakaas-Novos, de águas escuras e apressadas, marcaram uma passagem que dificilmente esquecerei enquanto viver. Em parte pelos índios que ali viviam, os belos e enigmáticos Pakaas-Novos, em parte por ter presenciado a maneira como Denise Maldi se relacionava com eles.
(...) Antropofagia era assunto tabu, não gostavam de mencionar, a inibição impedia, provavelmente por conta da influência missionária:
- Ninguém precisa falar nada, se não quiser – disse Denise.
Mas, para ela, os Pakaas-Novos falaram. Esclareceram que a preferência ia para os braços e as pernas, e que os últimos rituais teriam sido realizados nos anos 60.

Os textos de Aguinaldo Araújo Ramos

Aguinaldo Ramos em Rondônia, 1981 - foto Lilian Newlands

Fotógrafo do Jornal do Brasil, Aguinaldo Ramos viveu, ao lado de Lilian e Apoena, ao viajar pelas principais aldeias indígenas de Rondônia nestas semanas do final do ano de 1981, uma das suas mais importantes experiências profissionais, das quais fala em seu depoimento O Caos de Apoena:
E se há outra coisa que eu não compreendia era a vida do Apoena.
Quer dizer, tecnicamente ou sociologicamente (ou por qualquer um desses critérios que se inventa para explicar porque é que deixamos de fazer o ideal e simplesmente carregamos nosso piano cotidiano), aí é muito fácil... O cara era filho de sertanista, viveu desde guri entre brancos e índios, acompanhou muitos primeiros contatos, não tinha mesmo nenhum motivo para preferir ser bancário (e sei que há nisso uma ironia mortal...). Certo. Mas, porque persistia nesse esforço insensato de administrar o caos?

 


Colabora ainda, na edição do livro, assinando um rápido perfil de Chico Meirelles, pai de Apoena:

Em 1939, em Guajará-Mirim, conheceu Abigail, moça belíssima, com traços de descendência dos índios quíchuas. No mesmo dia, foi falar com seu irmão e, pouco depois, os dois partiam para a área dos Pakaá-Nova. Os índios, de uma região cortada pela ferrovia Madeira-Mamoré e frequentemente invadida por seringueiros, estavam em guerra. No correr dos três anos de atração, em que muitos trabalhadores do SPI foram flechados (onze deles mortos), nasce sua primeira filha, Lídice.


Chico Meirelles na revista da Funai

E participa também com um pequeno mas incisivo ensaio sobre as condições do período final da vida de Apoena Meirelles:
Neste ponto se inicia a última etapa da vida de Apoena Meirelles, abre-se o último capítulo da sua amorosa relação com o índio brasileiro. Não que a sociedade tenha lhe dado o tratamento de “herói reabilitado” ou de “salvador da pátria”, que não caberia (nem ele assumiria...), mas sua nomeação para coordenador da força-tarefa para a questão da mineração de diamantes na área da Reserva Roosevelt, reconhece nele autoridade e experiência para promover o diálogo entre os Cinta-larga e os invasores.


Poema de Tainá Meirelles, filha de Apoena

O sentimento de Tainá, relembrando o pai: 
Que as palavras eram poucas, mas significavam muito.
Que os momentos eram raros, mas belos e intensos. Mas não haverá mais momentos. Que eu não vou mais saber espelhar-me em ti, pois meu espelho se quebrou...

Os depoimentos de Denise

Denise Maldi, mulher de Apoena, escreveu sobre sua vida (e suas aventuras) ao lado de Apoena.
Fala dos contatos com os índios:
Era, então, dezembro de 1972. Quando finalmente o vi, senti-me subitamente calma, com a certeza absoluta que os próximos anos da minha vida seriam ao seu lado. Sete meses depois, com menos de 15 dias de casada, eu voava com ele para a Frente de Atração Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso, onde se dava prosseguimento aos trabalhos dos irmãos Villas Boas na “pacificação” dos índios Kren-Akarore.





Denise entre os Pakaás-Novos - foto Lilian Newlands

E também com os “civilizados”:
A área grilada – que quando Apoena denunciou pela primeira vez contava com 100 famílias –
dera origem a uma cidade, Espigão d’Oeste, hoje capital de um município. Ali, um dos chefes da colonizadora espalhava o ódio aos índios em geral e a Apoena em particular, fazia ameaças e mandava “recados”, dizendo estar preparando uma tocaia para matá-lo.
Nas cidades, como num filme do velho oeste, todo mundo andava ostensivamente armado.
Toda essa ocupação desordenada já deixara saldos trágicos em vidas sepultadas: tanto índios quanto brancos. Alguns anos antes, no Posto Roosevelt (Cintas-Largas) morreram o jornalista Possidônio Bastos e o radiotelegrafista Acrísio Lima. Vítimas do equívoco que acabou confundindo-os, aos olhos dos índios, com os seus inimigos.

Os diários de Apoena


Mesmo em meio aos maiores desconfortos, muitas vezes em tapiris (abrigo contra as chuvas, feitos de folhas, nas florestas, às margens dos rios) das frentes de aproximação, Apoena registrou sentimentos, angústias e esperanças em seus diários, uma parte deles recuperada no livro:

Apoena e Zé Bel nos Zorós, 1978 - foto Leonard Greenwood

 03/05/73 > A noite está linda, um verdadeiro caos toma conta do meu interior, procurei meu gravador e o encontrei totalmente desmantelado, pois os Kren-Akarore quiseram ver quem é que falava dentro daquela caixinha.
Recebi um rádio de Cuiabá que me deixou puto, pois pedia que racionássemos os mantimentos. Respondi pedindo que eles racionassem as compras de papel de material de expediente, começando por evitar gastarem papel com rádios sem sentido.
Que todos os burocratas se (...)...




Uma entrevista de Apoena

Apoena faz um balanço dos acontecimentos em entrevista a seu primo, o jornalista Sérgio Meirelles:



Hoje, os próprios índios determinam sua história. Antigamente, dava-se ênfase às opiniões do meu pai, dos Villas Boas, ao mesmo tempo que ficava em evidência também o discurso do governo. Enfim, todos falavam pelos índios. Agora eles falam por eles, não precisam de porta-vozes. Participam, discutem e defendem seus pontos de vista.


Apoena copiloto, Rondônia, 1981 - foto Aguinaldo Ramos

Comentários ao livro

O jornalista Carlos Ramos enfatiza, na orelha do livro:
Apoena – o homem que enxerga longe, além de ser um daqueles livros que se quer devorar em uma noite e mantê-lo como de cabeceira eternamente, mexe com a imaginação do leitor. Dá a sensação de que essa história precisa ser registrada pela Sétima Arte. Fica a sugestão aos cineastas e produtores de cinema.

Na Apresentação do livro, os Editores afirmam:
Neste livro estão contidos detalhes, textos e depoimentos que não se perderam nem perderam sua atualidade. É uma história de paixão e coragem (...).
E mostra, também, porque a função do sertanista pode ser considerado um caso único na história da humanidade.


Lilian Newlands, na contracapa, em relação a Apoena Meirelles, sua mulher Denise Maldi e tantos dos seus amigos mortos na floresta, como o sertanista Zé Bel, o piloto Ari Dal Toé e o jornalista Possidônio Cavalcanti, afirma:
Eram todos jovens, amavam a vida, foram movidos por paixões diversas e tiveram seus legados reconhecidos. Levaram vidas intensas e pode-se dizer que, por muitas vezes, tocaram a felicidade que a mata lhes concedeu.
Se o final foi trágico, a vida foi plena. Nos dias de hoje isso constitui quase um milagre.

Para adquirir o livro

Apoena – o homem que enxerga longe”, está, aparentemente, esgotado.
Talvez possa ser encontrado em pontos de venda da Editora UCG, da Universidade Católica de Goiás.

Leitores de outras cidades do Brasil podem adquirir exemplares usados através da Internet, nos sites da Estante Virtual, da Amazon, do Mercado Livre, enquanto está esgotado em diversos outros.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

A série Livri

Este blog tem o formato livri, com leitura em ordem direta, e está sendo editado desde o final de Julho de 2007.
Se necessário serão acrescentadas, após o lançamento do livro, novas informações, sobre a forma de postagens.


Da série LIVRI - O livro livre na Internet >
(clique com o lado direito do mouse e escolha "abrir nova janela")
Pão de Açúcar Tempo Todo
o primeiro livri, fotos e textos;
A Paixão Dança
um poema-romance, em fotos e textos;
Santa Teresa dos Detalhes,
um passeio premiado pelo bairro mais charmoso do Rio;
Três Contos de Futebol,
incluindo o finalista do Contos do Rio/Prosa & Verso/O Globo, 2006;
dois contos meio amorosos,
incluindo o 5o. lugar no XVI Concurso Nacional de Contos José Cândido de Carvalho, 2006;
A Ilha de Cabo Quente,
conto vencedor do Concurso Literário Teixeira e Souza (Cabo Frio-RJ, 2007).
Personagem
a história do projeto de livro, fotos & textos.
Esses Sexos...
para os que gostam de sexo e também para os que praticam.

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E os blogs
A História bem na Foto,
com fotos e depoimentos de grandes fotojornalistas brasileiros;
A Foto Histórica (e suas histórias) no Brasil,
um dos vencedores do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia - 2010.


Arrepios Urbanos - espantos e enganos da cidade  > http://arrepiosurbanos.blogspot.com.br/

O Rio Guina para... o Futuro  > http://rioguina.blogspot.com.br/

E, a partir de 2013, pela
os livros "2112 ...é o fim!"
O Brasil caindo nos crônicos contos de um futuro mal passado...    
(uma versão enxuta de Rio de Amores)
Reminiscências e elucubrações sobre a arte e a prática do fotojornalismo